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6 de out. de 2011

Cerveja Kaiser

          A origem da cervejaria Kaiser é uma história de autodefesa que tem por trás um pacato empresário mineiro, apreciador de bons vinhos, cigarrilhas holandesas e charutos cubanos. Luiz Otávio Pôssas Gonçalves, um advogado de Belo Horizonte, jamais pensou em ser dono de uma grande cervejaria. Tampouco sonhou em, um dia, incomodar as gigantes da época, Brahma e Antarctica, quando criou a Kaiser, em 1982, em Divinópolis, a 124 quilômetros de Belo Horizonte. Ele queria apenas evitar que seus negócios naufragassem.
          Dono de uma fábrica da Coca-Cola, Gonçalves vinha perdendo mercado para os refrigerantes da Brahma e da Antarctica, que usavam e abusavam da venda casada. Gonçalves resolveu desempatar o jogo e passou a fabricar cerveja. A primeira investida nesse sentido foi tentar comprar uma pequena fábrica mineira, a cervejaria Alterosa. A Antarctica percebeu a manobra e foi mais rápida: ofereceu 30% a mais pela empresa e obrigou Gonçalves a recuar.
          O desespero já batia à porta quando Gonçalves resolveu arriscar todo o capital que acumulara na construção de uma cervejaria. Detalhe: ele nada entendia de cerveja. Valeu-lhe sua boa estrela. Por acaso conheceu nessa época Manuel Barros, um português que fugira da revolução angolana e vivia em Manaus. Cervejeiro de profissão, Barros montara no passado várias fábricas para a Heineken holandesa. Contratado por Gonçalves, Barros projetou os equipamentos e em nove meses a Kaiser colocou sua primeira garrafa no mercado.
          Para chegar à receita ideal, entretanto, a empresa jogou 700.000 litros de cerveja no ralo. Apesar do desperdício inicial, a Kaiser logo mostrou que veio para ficar. A fábrica de Divinópolis era mais eficiente que as das centenárias cervejarias brasileiras. Ela usa um processo de maturação e fermentação em tanques fechados, sem interferência ambiental.
          Gonçalves estava acostumado a conquistar o mercado a unha. Começou cedo no mundo dos negócios e aprendeu a duras penas que para crescer é preciso garra. Aos 17 anos desistiu de estudar, por total incompatibilidade com a vida escolar.
          A união da Kaiser com a Coca-Cola foi um sucesso que se espraiou para o resto do país. Em poucos anos, dez fabricantes da Coca-Cola eram sócios da Kaiser. A própria Coca-Cola Internacional passou a deter 10% da cervejaria.
          A holandesa Heineken também entrou na parceria e passou a ser o maior acionista individual da Kaiser, com 12,2% do capital. No início da década de 1990, a Heineken fez acordo com a Kaiser para a fabricação da cerveja no Brasil. Além de fabricar, a cervejaria brasileira era responsável também pela distribuição da Heineken.
          Em maio de 1992, sob a coordenação da executiva Susy Blumberg, a Kaiser colocou na praça a Bock, cerveja de inverno com a qual a Kaiser pretendia incomodar a Antarctica e a Brahma. As vendas da Bock foram quatro vezes maior do que o estimado. Um mês depois de lançada, a cerveja sumiu das ruas, por falta de insumos. Foi a primeira bock do mercado brasileiro, cerveja de forte teor alcoólico e associada ao clima frio, por isso sua produção é sazonal. Foi considerada a melhor bock do mercado nacional, mas sua fabricação é inconstante. Desde 2012 deixou de ser fabricada com regularidade.
          A Kaiser logo atingiu participação no mercado de cerveja de 11,6%, em 1993. Em julho daquele ano bateu em 12,9% segundo o Instituto Nielsen. Na Grande São Paulo chegou a 22,3%. No final de 1993, as cervejas saíam de seis fábricas: duas em São Paulo e uma nos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia.
          E a vingança veio a cavalo. Se Gonçalves criou a Kaiser para ter cerveja para poder fornecer junto com a Coca Cola para não ser trucidado por fornecedores da Brahma e Antarctica, que segundo ele usavam e abusavam a venda casada, agora era a Coca Cola que, fortalecida com seu refrigerante, e usando sua força, fazia com que em shopping centers inteiros a única cerveja que podia ser encontrada era a Kaiser.
          Por volta de 1993, a Kaiser vinha roubando fatias do mercado da Brahma e da Antarctica. Nos primeiros meses daquele ano, o grupo cervejeiro argentino Quilmes, que também engarrafava a cerveja holandesa Heineken, então dona no Brasil de 12,2% do capital da Kaiser, teria feito uma oferta pela cervejaria brasileira. O valor oferecido, segundo estimativas do setor, beirou os 300 milhões de dólares. Não levou. Ao contrário, os acionistas da Kaiser seguiam investindo na empresa e se preparavam para o lançamento de outra marca: Kaiser Böck, cerveja encorpada para ser consumida no inverno.
          No início de setembro de 1994, a Heineken aumentou sua participação de 12,2% na Kaiser, para 15%. A ampliação da fatia seria uma forma de tornar mais palatável, à empresa holandesa, a anunciada associação entre a Kaiser e a Miller, dos Estados Unidos. Em parceria, o trio se preparava para combater a entrada no Brasil da Budweiser, que estava finalizando uma joint venture com a Antarctica.
          Em meados de 2000, a Kaiser colocou-se à venda, mas transcorreu mais de um ano sem ela ter conseguido convencer algum comprador estrangeiro de que valia o que pedia. Diante disso, a empresa teria partido para uma nova estratégia: valorizar seu passe. Um movimento nesse sentido foi a compra da marca de cerveja preta Xingu. Por volta de agosto de 2001, a Kaiser estaria de olho na Schincariol, então terceira maior empresa do setor no Brasil. Com um portfólio de produtos mais abrangente e uma rede de distribuição independente da Coca-Cola, sua acionista com 10% de participação, a empresa - que negava qualquer pretensão expansionista - poderia se tornar mais atraente para eventuais compradores estrangeiros,  entre eles, a Anheuser-Busch, a South African Breweries (SAB), e a holandesa Heineken, que já detinha 14% da cervejaria.
          A partir de fevereiro de 2002, na tentativa de conquistar o consumidor carioca, a Kaiser passou a comercializar a cerveja escura Xingu no Rio de Janeiro. Até então, a participação da Kaiser naquele mercado era pra lá de modesta: meros 3% com a marca Santa Cerva.
          Em março de 2002 a canadense Molson Coors desembolsa 765 milhões de dólares pela Kaiser. Em 2000, os canadenses já haviam desembolsado 98 milhões de dólares para ficar com a Bavária e mais cinco fábricas desmembradas da Ambev. De imediato, a compra da Kaiser livrou a Molson de uma intimidade incômoda. A Bavária, até então, dependia da distribuição da AmBev, uma obrigação imposta pelo Cade (a Ambev era obrigada a distribuir, e a Molson/Bavária não tinha outra opção). Com os negócios, as marcas locais da Molson passaram a deter quase 18% do mercado brasileiro. A compra da Kaiser pela Molson foi o primeiro lance da disputa com a Ambev pelo mercado das Américas.
          Em maio de 2003, os canadenses acabaram de fazer uma avaliação de suas 29 distribuidoras no Brasil, todas engarrafadoras da Coca-Cola. Dali para a frente, a Kaiser premiaria as de bons resultados e aplicaria corretivos nas ruins que se concentravam no Nordeste e no Rio de Janeiro. A marca chegava a cerca de 450.000 pontos-de-venda, quase 10% menos que em 2002. Uma possibilidade era a própria Kaiser assumir a venda de cervejas diretamente para bares e restaurantes. No Canadá, a Molson distribui sua cerveja e também a de outras marcas, como a holandesa Heineken.
          Sob o guarda-chuva da Molson, porém, a Kaiser foi perdendo mercado consistentemente. Na gestão dos canadenses, a empresa perdeu quase 10 pontos percentuais em sua participação de mercado. Passou, segundo a ACNielsen, sua fatia a apenas 8,1% no início de 2006. Isso fez com que a Kaiser, comprada por 765 milhões de dólares em 2002, fosse vendida à mexicana Femsa, dona da marca Sol, em janeiro de 2006, por um valor bem inferior, 68 milhões de dólares.
          Para a Molson Coors, a passagem pela cervejaria brasileira deixou de ser a promessa de expansão num mercado em que a presença global faz cada vez mais diferença, para transformar-se numa tragédia financeira.
          Assim que os mexicanos da Femsa, capitaneados pelo executivo José Antonio Fernández ("El Diablo"), assumiram a empresa, promoveram um forte programa de corte de custos, reposicionando as marcas (Kaiser, Bavaria e Xingu) e implementando um inédito conservadorismo na administração da companhia. Tudo isto tinha um só objetivo: levar a Kaiser de volta ao caminho do lucro.
          Logo após a aquisição, Fernández despachou 15 executivos de sua confiança para uma imersão na sede da Kaiser em São Paulo. Com a chegada do time, instalou-se um previsível clima de intranquilidade nos escritórios da empresa - período que foi batizado por alguns funcionários de "efeito tequila". Imediatamente, diretores que ocupavam postos-chave foram remanejados ou deixaram a empresa para abrir espaço para os executivos mexicanos. O então presidente, Fernando Tigre, contratado pela Molson para iniciar um processo de reestruturação em 2004, teve sua saída anunciada em março e deixou a empresa em 17 de abril (2006). Em seu lugar, assumiu o presidente da Femsa na Argentina, Miguel Ángel Peirano, um dos principais colaboradores de El Diablo.
          A Femsa imprimiu uma rígida hierarquia em que todas as decisões são precedidas de uma consulta a Monterrey, no México, onde fica a sede mundial da Femsa. Com faturamento total de 10 bilhões de dólares em 2005, a Femsa era a maior empresa de bebidas do México. Antes da chegada da Molson, vendas e distribuição eram feitas pela equipe da Coca-Cola, sua antiga controladora. A Molson decidiu criar uma equipe própria, com 1.200 vendedores espalhados pelo país. Os resultados não vieram. E a estrutura montada custou à Kaiser 100 milhões de reais por ano. Com a Femsa, toda a venda volta a ser feita pela equipe da Coca-Cola - um processo que já havia sido iniciado por Tigre.
          Como novo fator complicador, uma concorrente novata, a agressiva cervejaria Petrópolis, incomodava cada vez mais. Com as cervejas Itaipava, Crystal e Petra, a Petrópolis já detinha (em abril de 2006), 6% do mercado - marca atingida, sobretudo, graças à fragilidade da Kaiser.
          Em outubro de 2006, os mexicanos lançaram por aqui a cerveja Sol, para fazer par com a Kaiser, com fórmula diferente da mexicana, lançada em 1899. A Femsa pretendia recuperar o mercado perdido pelas marcas Kaiser e Bavaria, que então não passavam de 7,8%. Foi uma grande decepção para a Femsa. Apesar dos mais de 300 milhões de reais investidos em seu lançamento, a Sol nunca chegou a ter nem sequer 1 ponto percentual de participação nas vendas - em grande medida porque a bebida não caiu no gosto do consumidor e era difícil encontrá-la em bares e restaurantes.
          Por volta de outubro de 2007, a Femsa encontrou o culpado por seu fraco desempenho nos últimos tempos: a empresa de pesquisas Nielsen, que mede o mercado de cervejas no país. Os mexicanos perderam a paciência e romperam o contrato após meses de negociação tentando convencer a Nielsen a ampliar a cobertura dos pontos de pesquisa. Segundo a Femsa, em 2004 os pontos-de-venda cobertos pela Nielsen representavam 87% do volume de cerveja. Em 2007, não chegavam a 60%. Essa queda aumentaria em muito a margem de erro.
          No início de 2010, a Heineken comprou os negócios da Femsa. A Kaiser, agora pertence 100% aos holandeses. A Kaiser, assim como a Bavaria, Xingu e Sol, passou a ser fabricada pela Heineken Brasil.
(Fonte: revista Exame - 31.03.1993 / 12.05.1993 /  20.07.1994 / 14.09.1994 / 05.09.2001 / 23.01.2002 / 03.04.2002 / 11.06.2003 / 26.04.2006 / 08.11.2006 / 07.11.2007 / 10.03.2010 / 15.12.2010 / Veja SP - 22.06.2017 / site Rebolinho- partes)

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