1 de mai. de 2020

Panair

          A Panair foi fundada em 1929 como NYRBA, uma empresa de um voo só entre Nova York, Rio de Janeiro e Buenos Aires. A companhia foi comprada em 1930 pela gigante americana Pan American Airlines e se tornou sua subsidiária brasileira, com o nome Panair do Brasil.
          Em 2 de setembro de 1936, por meio da Lei nº 76, o governo de Minas é autorizado a conceder à Panair do Brasil o direito de explorar a linha entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Em 23 de março de 1937, é oficialmente inaugurada a linha comercial Rio-BH-Rio com um avião bimotor Lockeed 10E Electra I, PP-PAS, com capacidade para dois tripulantes e seis passageiros.
          A companhia marcou época no país entre as décadas de 1930 e 1950 e passou a sofrer pressões para ser nacionalizada ao final dos anos 1950. Foi inteiramente nacionalizada em 1961, pelas mãos de Celso da Rocha Miranda e o paulista Mario Wallace Simonsen, cujos grupos econômicos somavam mais de 40 empresas que se destacavam em diversos setores.
          Em meados da década de 1960, a Panair era a mais importante companhia aérea do país, concessionária exclusiva das rotas para a Europa, África e Oriente Médio, além de operar em vários países da América do Sul e em todo o Brasil, executando um serviço único de integração em 43 localidades da Amazônia.
          A empresa tornou-se uma lenda na aviação brasileira que se incorporou ao imaginário popular, chegando a ser citada na canção "Conversando no Bar", de Fernando Brant e Milton Nascimento e também interpretada por Elis Regina. A música teria sido feita como protesto à ditadura e utilizou a Panair justamente pelo que fizeram com ela como se pode ver nos parágrafos seguintes.
          No dia 10 de fevereiro de 1965, sem que antes fosse instaurado um processo administrativo regular, todas as suas concessões de linhas aéreas foram suspensas, por meio de um curto despacho assinado pelo presidente da República, o marechal Castello Branco, e pelo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes.
          A licença de operar foi retirada pelo regime militar sem aviso prévio, sendo, em seguida, liquidada judicialmente. “Fomos o caso mais emblemático de pessoa jurídica perseguida pela ditadura. Eles não apenas fecharam a Panair de forma arbitrária e violenta, atingindo em cheio milhares de famílias, como fabricaram dados para incriminar seus acionistas e diretores, em atos de perseguição continuada que duraram anos”, destaca o carioca Rodolfo da Rocha Miranda, filho de Celso da Rocha Miranda.
          “A notícia foi transmitida pelo rádio e pegou todo mundo completamente de surpresa. A opinião pública ficou perplexa”, lembra Luiz Paulo Sampaio, filho de Paulo Sampaio, que durante 16 anos presidiu a empresa. “A Panair era o cartão de visitas do Brasil lá fora e um orgulho nacional por sua eficiência e alto padrão de atendimento. Não havia a menor expectativa de que algo como aquilo pudesse acontecer”.
          Erik de Carvalho, o sucessor de Ruben Berta na presidência da aérea gaúcha Varig, chegou a admitir à revista estrangeira Air Travel que sua companhia, mergulhada no déficit desde 1960 ― agravado pela aquisição do Consórcio REAL-Aerovias-Nacional no ano seguinte ―, só conseguiu voltar ao lucro em 1966, depois que passou a operar as linhas europeias. Em seu livro “Na periferia da história”, de 1998, o banqueiro José Oscar de Mello Flores ― que atuou no IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) ao lado de José Bento Ribeiro Dantas, presidente da Cruzeiro ― afirmou que o brigadeiro Eduardo Gomes foi ludibriado pelos rivais de Simonsen e Rocha Miranda.
          “A Panair do Brasil foi tomada por brigadeiros que não eram esclarecidos, porque não havia razão para isso. O maior acionista, Celso da Rocha Miranda, era ligado ao Juscelino, e por isso eles fizeram a intervenção na Panair. Agora, entregaram as linhas internacionais, que era o que interessava, à Varig, ao Rubem Berta (...) E o Bento Ribeiro Dantas, que trabalhou na Revolução desde o início, ficou com as linhas nacionais. O brigadeiro Eduardo Gomes, ministro da Aeronáutica do Castelo, foi inteiramente embrulhado”, escreveu.
          A Panair era dona da Celma, a maior e mais avançada oficina de reparos de motores de aviões do Hemisfério Sul (em Petrópolis, hoje da GE), que prestava serviço a congêneres nacionais, estrangeiras e da própria FAB, e controlava a mais extensa rede de estações meteorológicas e de telecomunicações aeronáuticas do continente, que atendia toda aeronave civil ou militar, de qualquer nacionalidade, que cruzasse o Atlântico Sul.
          “No dia da cassação das linhas, a Celma e o Departamento de Comunicações foram ocupados por tropas armadas e forçados a permanecer no ar, porque se os serviços fossem interrompidos toda a aviação comercial pararia na América do Sul”, recorda Sampaio.
          Com os voos paralisados, a Panair pediu concordata da 6ª Vara Cível do Rio de Janeiro para tentar preservar intacto seu patrimônio, enquanto lutava para reaver as linhas subitamente cassadas. Porém, apenas cinco dias depois da investida militar, o juiz da 6ª Vara indeferiu o pedido, convertendo-o em falência. “Nunca houve justificativa aceitável para a decisão”, garante Rocha Miranda. “Nenhum credor protestou títulos da companhia. Todos os nossos funcionários recebiam em dia e o patrimônio superava as dívidas. Mas o juiz recebeu a visita pessoal do brigadeiro Eduardo Gomes e despachou dizendo que sem as linhas iríamos falir de qualquer jeito”.
          Algumas passagens dessa história são tão inusitadas, que mais parecem cenas de um thriller de cinema. “No dia 10 de fevereiro, poucas horas depois que o governo cassou as linhas, a Varig já tinha um avião pronto no pátio do Galeão para fazer o nosso voo que sairia para a Europa naquela noite”, lembra Helio Ruben de Castro Pinto, piloto da aérea fechada. “Com certeza, eles souberam com antecedência que o governo nos liquidaria e tiveram tempo para treinar seus tripulantes. Ninguém põe um jato do Rio para Paris de uma hora para outra”. Mesmo assim, a tripulação que aguardava o voo de retorno (da Panair) em Paris teve que vir trabalhando para o Rio de Janeiro já em avião da Varig. Segundo depoimentos, foi difícil disfarçar o descontentamento, no trato com os passageiros, que não tinham a mínima culpa. Na época, a Varig ainda engatinhava no mercado de longo percurso, com linhas apenas para os Estados Unidos. As rotas domésticas foram entregues à Cruzeiro do Sul, que seria comprada pela aérea gaúcha em 1975.
          Ao retirar as linhas, os militares alegaram apenas que a situação financeira da companhia era irrecuperável, o que possivelmente poderia produzir reflexos futuros na segurança de voo. Os fatos, no entanto, sinalizavam o contrário. O Aviso Ministerial n° 28, emitido um ano antes pela então Diretoria de Aeronáutica Civil (DAC), órgão regulador da aviação, atestara que a Panair tinha organização boa e pessoal técnico e serviços de manutenção adequados. Além disso, um relatório da firma Ecotec publicado dias antes da intervenção apontara que, dentre todas as aéreas brasileiras, a empresa era a que tinha as melhores chances de se recuperar da crise que assolava todo o setor, provocada, principalmente, pela forte desvalorização do câmbio e a alta inflação.
          Outro exemplo do porte do patrimônio da Panair é que vários aeroportos nacionais, como os de Belém, Fortaleza, Natal, Recife e Salvador, foram construídos em terrenos de propriedade da companhia, sendo que em alguns casos a titularidade nunca foi definitivamente passada para o Estado.
          Cinco mil funcionários ficaram desempregados do dia para a noite e sem meios de sustentar as famílias. A situação se alongou por meses e vários funcionários se desesperaram e acabaram se suicidando. Uma tragédia.
          A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em 2012 para apurar as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, acolheu o caso e realizou uma audiência pública em 23 de março de 2013 para reunir informações. Em 10 de dezembro de 2014, seus integrantes confirmaram no relatório final que a companhia foi liquidada por motivos políticos e não financeiros, e que esse processo contou com a participação de agentes da União e instituições como o SNI (Serviço Nacional de Informações), beneficiando concorrentes.
          Em evento realizado no final de setembro de 2023, depois de mais de uma hora que a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos estava reunida, a presidente do órgão, a conselheira Eneá de Stutz e Almeida, proclamou o resultado da votação. Por nove votos a zero, o Estado reconhecia postumamente a condição de perseguido político do empresário Celso da Rocha Miranda, um dos proprietários da empresa aérea Panair do Brasil.                     
          “Quero pedir desculpas em nome do Estado brasileiro pela perseguição política à família dos senhores, bem como pela perseguição que os 5 mil funcionários da Panair do Brasil sofreram. Peço desculpas para que nunca mais aconteça esse tipo de situação”, afirmou Eneá. Ela se dirigia ao empresário Rodolfo da Rocha Miranda, de 74 anos, filho de Celso, que compareceu à sessão, realizada no fim de setembro (2023).
          A Panair do Brasil havia sido colocada no chão em 10 de fevereiro de 1965, quando era a maior empresa aérea do País. O regime militar suspendeu suas linhas e as repassou, em seguida, à Varig. Por 58 anos, as famílias Rocha Miranda e Simonsen, controladoras da companhia, travaram batalhas na Justiça para limpar seus nomes e provar que os empresários Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen foram vítimas de perseguição política.
          Ambos apoiavam Juscelino Kubitschek (PSD), cassado pelos militares após o golpe de 1964. Essa proximidade atraiu a ira dos militares e de políticos, como o governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN). Os militares ainda desapropriaram três aeroportos da empresa – Belém, Fortaleza e Recife – e a companhia Celma, de manutenção de turbinas de aviões. Por fim, pressionaram Simonsen a se desfazer da TV Excelsior, além de confiscarem suas operações com café no exterior.
          Rodolfo chorou na sessão. “Quando eu tinha 15 anos, meu pai disse que a Panair tinha sido fechada. Perguntei por que ele insistia na Panair se tinha outras empresas e ele disse: ‘Um dia você vai entender’. Minha mãe dizia que todos deviam saber o que é ser empresário em um país que não tem legislação que o proteja. Onde ou se é amigo do rei ou se é inimigo.”
          Foi ele quem apresentou o pedido de anistia em nome do pai, em 2014. Não queria indenização financeira. Fundamentou o processo em documentos obtidos via Lei de Acesso à Informação – registros sigilosos do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa) que demonstrariam a perseguição do regime sob o disfarce de devassa fiscal em razão de alegações de enriquecimento ilícito. “Agora vamos estudar como fazer essa ação coletiva”, disse Rodolfo ao Estadão. Ele conseguiu levantar a falência da Panair, decretada em 1965, em 1995. Hoje, a empresa tem dois funcionários: o empresário e um advogado.
          Em 2020, a 14.ª Vara Civil Federal do Rio reconheceu a perseguição política ao pai do empresário – falecido em 1986 – e indenizou a família em R$ 100 mil. O caso está no Tribunal Regional Federal da 2.ª Região. Rodolfo ainda ganhou na Justiça uma das ações de indenização pelos aeroportos – o de Belém – e obteve R$ 50 milhões. As outras duas aguardam decisão do Superior Tribunal de Justiça.
          O resultado do julgamento de Celso da Rocha Miranda incentivou outra herdeira da Panair a buscar o mesmo para a memória de seu pai. Trata-se de Marylou Simonsen, de 80 anos, a única filha viva do empresário Mário (Wallace) Simonsen. Seu pai morreu na Inglaterra. “Tomei horror a tudo isso e não queria fazer nada, mas agora vou entrar com a ação.
          ” Marylou quer que seja reconhecida a anistia de seu pai e a condição de perseguido político. “Todo nosso patrimônio foi bloqueado na época”, contou. “As lojas da Panair eram uma espécie de consulado informal do Brasil naquela época.”
          O Ministério dos Direitos Humanos deve rever cerca de 4 mil processos de anistia que foram negados pelo governo Bolsonaro – o caso de Celso da Rocha Miranda foi um deles. Na época, a comissão tinha entre seus integrantes o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, conhecido por suas relações com o grupo Terrorismo Nunca Mais.
(Fonte: ÉpocaNegócios - 10.02.2015 / IstoÉDinheiro - 30.01.2019 / Dica de Hoje Research - 05.10.2021 / Coleção Folha Fotos Antigas do Brasil / Estadão - Marcelo Gogoy - s/perseguição política à família Rocha Miranda - 26.10.2023 - partes)

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