26 de fev. de 2023

De Mendes Chocolate Yanomami

          A fabricante de chocolate De Mendes - Chocolates da Amazônia, foi fundada em 2014 pelo 
químico e chocolateiro César de Mendes, que é hoje seu presidente.
          César de Mendes entrou pela primeira vez em território Yanomami acompanhando uma equipe do Instituto Socioambiental (ISA). Seu papel era avaliar o cacau presente na aldeia Waikás, em Roraima, habitada por povos Yanomami e Ye'kwana. O cacau poderia gerar uma alternativa de renda para os indígenas. Chegando à área, César encontrou nos cacaueiros frutos já bem maduros, mas com muito potencial para render um bom chocolate. As primeiras amêndoas foram colhidas e torradas na aldeia. Viraram uma barra enformada em folha de bananeira e resfriada de forma improvisada, em uma geladeira cedida por uma equipe de saúde. Todos puderam se deliciar juntos com um alimento criado a 
partir de frutos da terra, preparado ali mesmo.
          O ano era 2018 e os indígenas eram ameaçados de todas as formas pela invasão do garimpo ilegal no seu território -- envenenamento, violência, doenças e aliciamento de jovens para trabalhar no garimpo. A visita do chocolateiro iniciou uma parceria importante. "Minha vida tomou significado diferente depois que tive contato com os Yanomami. Deixei de ser um chocolateiro e passei a ser um ativista, um ambientalista social, um contador de histórias. Conto a história dessas pessoas que vivem à margem de direitos, que são atacadas por serem inocentes, como já dizia a música da Legião Urbana”, diz César. Com os chocolates que produz em uma fábrica localizada na comunidade tradicional de Colônia Chicano, em Santa Bárbara, na região metropolitana de Belém do Pará, o chocolatier conta histórias de vida por meio de variedades de cacau nativo. Cada variedade tem algo a contar sobre 
pessoas, plantas, animais e ecossistemas inteiros.
          No encontro de 2018, os indígenas participaram de uma oficina em que César compartilhou algumas técnicas de plantio. A ideia era que pudessem plantar novas árvores, perto da aldeia, já que costumavam caminhar até três dias para chegar aos pontos onde o cacau nascia espontaneamente na floresta. “A gente começou a fazer essa oficina, e ninguém falava nada. Só olhava. Eu cavava, fazia os 
berços, preparava o ambiente, pegava as mudas, plantava, alinhava. E eles só olhando”, lembra.
          No ano seguinte, o químico chocolateiro voltou à aldeia um pouco receoso, sem saber se alguém tinha se interessado pela nova possibilidade. César conta que, assim que saiu do avião, foi levado por eles direto até a plantação de cacau. Os indígenas mostraram o resultado do trabalho: linhas agroflorestais por onde se espalhavam cerca de 3,5 mil pés de cacau nativo da Amazônia -- plantados sem derrubar nada da mata. Para que as mudas recebessem luz do sol, eles simplesmente subiram nas árvores e podaram os galhos. "Eu me abaixei para tentar esconder as lagrimas e pegar no pé do cacau. Disse que eles poderiam colocar ali também as cinzas do fogo, da cozinha, da comida, que era muito bom (para adubar), e eles diziam 'já fazemos isso'. Eles tinham um conhecimento de manejo e agricultura que me impressionou. Essas viagens foram envolvidas em uma energia diferente, era 
emocionalmente muito prazeroso, significativo, mesmo", conta.
          Salo Coslovsky, pesquisador da Amazônia 2030 e coordenador do Infloresta — projeto que pesquisa a cadeia econômica de produtos compatíveis com a floresta amazônica — conta que o cacau passou por um processo de empobrecimento semelhante ao de outras espécies de que nos alimentamos. Foi domesticado, passou por seleção, cruzamento seletivos, eventualmente processos de clonagem, e os produtores tendem a se concentrar em algumas poucas variedades, porque parecem mais produtivas: resistem a doenças, frutificam rapidamente, têm árvore baixa, entre outras características. "E aí, nas plantações pelo mundo, você tem só uma pequena amostra do que existe na natureza. O De Mendes vai à fonte, onde você tem toda a riqueza genética, gigantesca, difícil até de estimar, e tenta trabalhar com 
as comunidades tradicionais para buscar esse cacau", conta.
          Coslovsky considera esse trabalho importante por alguns motivos diferentes: cria uma opção de renda para comunidades interessadas em ingressar nesse mercado; valoriza o cacau nativo e selvagem; e ajuda a preservar o germoplasma, a base genética da espécie de forma integral. "Novas demandas vão aparecer: vamos precisar de cacau que resista a novas doenças, a mudanças climáticas, a um novo regime de chuvas. O pesquisador lembra que estudos recentes mostram que a Floresta Amazônica, de certa forma, é uma gigantesca agrofloresta, moldada ao longo dos milênios pelas populações locais. "A ideia de que é espontânea, natural, sem intervenção humana, não representa a realidade. Ela foi construída em parceria, pelos povos indígenas e os outros seres da natureza. E o que a parceria entre os Yanomami e a De Mendes faz é avançar nessa linha, que tem sido feita há milênios: aproveitar a riqueza natural e enriquecê-la", diz.

Barra de chocolate produzida com cacau nativo plantado e colhido pelo povo Yanomami — Foto: Divulgação

Barra de chocolate produzida com cacau nativo plantado e colhido pelo povo Yanomami — Foto: Divulgação

          No primeiro ano, a produção da Terra Indígena Yanomami rendeu pouco mais de 40 quilos de amêndoas de cacau. Com a pandemia, caiu para 33. Depois, voltou a aumentar e a última leva que chegou na fábrica De Mendes em Santa Bárbara foi de cerca de 250 quilos. Hoje o Chocolate Yanomami-Ye’kwana valoriza o conhecimento ancestral desses dois povos e gera renda para cerca de 10 comunidades que vivem às margens dos rios Uraricoera e Toototobi, diretamente ameaçadas pelo garimpo ilegal de ouro.
          César conta que a convivência com os Yanomami mudou sua visão de mundo. "Acho que um Yanomami prefere que eu sente lá para fumar um cachimbo, tomar um café, dormir em uma rede, conversar, em vez de eu só comprar o cacau dele. Acho que eles precisam e gostam mais disso do que outra coisa que a gente tenta vender como uma boa ideia", diz. "Hoje eles vendem cacau para a gente, é maravilhoso podermos exercer algum papel, ter alguma importância na vida deles, minimizar um pouco as mazelas que assolam a vida e o território deles. Mas isso não é o suficiente". César afirma que seu negócio visa a beneficiar quem mais trabalha e quem normalmente menos recebe na cadeia produtiva. "É muito grande a desigualdade de reconhecimento e de valorização, tanto cultural quanto financeira. A gente busca ter uma relação respeitosa com a floresta, com o cacau nativo, usar a vocação de incorporar a floresta, e não derrubar. É a relação que a gente tenta promover, divulgar, apoiar e perpetuar", diz.
          Essa experiência marcante fez com que o chocolateiro buscasse novas histórias indígenas para contar, como a do povo Paiter Suruí, que vive na Terra Sete de Setembro, em Rondônia, em uma região onde as áreas do entorno foram muito desmatadas. Ali, o cacau nativo de uma jovem agrofloresta é manejado e colhido pelos índios de forma a manter a Amazônia de pé. "No meu entendimento, a grande vocação do ser humano no planeta é ser um manejador, mas ele perdeu essa ideia pelo caminho", afirma.
          Filho de mãe quilombola descendente de indígenas e de pai ribeirinho com ascendência judaica e marroquina, César nasceu em Macapá, capital do Amapá. Foi para lá que seus pais se mudaram depois de casar e onde tiveram seus 9 filhos. Os dois moravam na cidade mas, como tinham origem rural, de comunidades tradicionais, a família costumava viajar com frequência nas férias e nos finais de semanas para os quilombos da região. Quando um dos irmãos foi para Belém fazer faculdade, todos foram junto. Por isso, vêm da capital paraense as suas primeiras lembranças chocólatras, da época em que a avó e a mãe faziam suco de cacau e chocolate com o fruto que elas mesmas colhiam do pé.
          Já adulto, César seguiu carreira acadêmica nas áreas de Química e Engenharia Química. Fez dois mestrados, em Química de Produtos Naturais e em Tecnologia de Alimentos. Trabalhou com fitoterápicos (plantas medicinais com aplicações na cura das doenças) e conheceu os modos de coleta e uso de remédios naturais pelas comunidades tradicionais. Durante o segundo mestrado deu consultoria em Campinas (SP) na área de alimentos e depois voltou para Belém. Aí o chocolate e a Amazônia voltaram de vez para sua vida: a prefeitura de Medicilândia (PA), cidade com maior produção de cacau do Brasil, o chamou para desenvolver em parceria com a Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica (Coopatrans) o projeto da fábrica de chocolates Amazônia Cacau, inaugurada em 2010. Depois de entregar o projeto, César se voltou totalmente para o estudo do cacau nativo da Amazônia e para a produção de chocolate artesanal.
          Nessa busca, o chocolateiro fez inúmeras incursões pela floresta. Conta que, quando morava em Belém, ia para a beira do rio, pegava carona de barco e saía sem destino certo, para conhecer melhor o interior do estado. Dormia de favor, hospedado por famílias em comunidades tradicionais. “Eles tratavam bem uma pessoa que não conheciam. Botavam para dormir dentro da casa deles, ninguém em cidade nenhuma faz isso. Te acolhiam e te davam o que tinham de melhor. Aquilo me quebrou, mudou meu modo de ver a vida, o mundo, crenças, valores. Sentavam na mesa com a família toda, ou as vezes faziam uma oração, contavam um monte de historias, era roda de conversa o tempo todo, você aprende muitas histórias, conhecendo um pouco da cultura. Foi assim que eu conheci a Amazônia. Hoje, não consigo parar mais.”
          Além de diversos povos indígenas, em suas andanças, César conheceu, por exemplo, o trabalho de Iolanda, Maria, Elda, Simone e Vitória, que fazem o manejo do cacau em uma área inundada e de difícil acesso às margens do rio Arauaia, em Barcarena (PA). As quatro entram na mata em busca dos cacaueiros para fazer a colheita da fruta. A história delas é contada por meio da barra de chocolate "Mulheres da Floresta". Já a barra "Vale do Jarí" conta a história de uma região de floresta densa, mas constantemente ameaçada pela atividade humana. Ali vivem pequenas comunidades que empregam técnicas sustentáveis de extrativismo. Uma delas é a Recreio, responsável pelas amêndoas usadas no chocolate.
          Hoje a De Mendes atua em um território de 4,5 milhões de hectares e beneficia diretamente 12 mil pessoas. A empresa recebeu investimento de R$ 1,5 milhão da aceleradora de negócios de impacto CBKK, a fim de aumentar a rede de fornecedores (como povos indígenas e tradicionais da floresta) e sondar novos mercados. A expectativa é que a De Mendes em breve passe do atual patamar de cerca de 1,5 tonelada produzida mensalmente e chegue à marca de 5 toneladas.
(Fonte: Época - 25.02.2023 - Um Só Planeta (Sabrina Neumann) - 22.02.2023)

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