10 de fev. de 2025

Montblanc (canetas)

          Por volta de 1985, o executivo Norbert Platt, presidente mundial da Montblanc, assumiu a frente de um trabalho de revalorização da marca Montblanc, em Hamburgo, na Alemanha, onde fica a sede da 
empresa.
          Naquela época era possível encontrar canetas Montblanc em papelarias americanas, francesas ou  japonesas. De lá para á, houve um upgrading nos pontos-de-venda: somente joalherias estão aptas a se cadastrar como revenda. As canetas, que não passavam de dois a três modelos diferentes, ganharam 120 versões e não se resumem mais às tradicionais tinteiros, que fizeram a história da empresa no começo do século XX. Há também esferográficas e roller ball, para quem não quer se arriscar com as penas. Boutiques exclusivas foram abertas - trinta em todo o mundo, considerando números de fins de 1995 e 
outras vinte que estavam prestes a ser inauguradas.
          Platt acredita que o consumo desenfreado está fazendo com que as pessoas se sintam perdidas e, assim, precisem de uma marca que lhes passe uma sensação de estabilidade e eternidade na qual possam se agarrar. A Montblanc pretende ser justamente essa marca. Para tanto, a empresa descartou qualquer postura fashion de decidiu só trabalhar com produtos feito artesanalmente, sobre os quais ela tenha total controle. Nada é licenciado ou feito por terceiros. Nos artigos de couro, por exemplo, do tratamento das pelas às últimas costuras de uma agenda, tudo é verticalizado. Os papéis cartas, com o logotipo da marca d'água, são feitos um a um. Uma única caneta, listrada de ouro branco e amarelo, 
modelo Solitaire, por exemplo, leva um dia inteiro para ser feita e toma o tempo integral de um artesão.
          Uma Montblanc de ouro cravejada de 4.810 brilhantes (a altura da montanha Mont Blanc, na divisa entre a França e a Suíça, qua dá nome à marca) sai por 120.000 dólares (dezembro de 1995). 
É a caneta mais cara do mundo e só é feita sob encomenda.
          No Brasil, a marca começou em 1992, com uma boutique aberta pelo distribuidor Freddy Rabbat. De acordo com Rabbat, um levantamento brasileiro de outubro de 1995 dava conta de que, entre as canetas de luxo acima de 100 dólares, a Montblanc respondia por 82% do mercado, seguida pela 
Waterman, com 8% e a Parker, com 3%.
(Fonte: Exame - 06.12.1995)

9 de fev. de 2025

Livraria Calil

          A Livraria Calil foi fundada em 1949 por Líbano Calil Atallah, um homem “meio atarracado”, segundo Maristela Calil, sua filha. O fundador é filho de um casal libanês de pendor intelectual que tocava um armarinho na rua 25 de Março, em São Paulo. Começou vendendo livros jurídicos, foi formando um acervo de respeito em torno das ciências humanas e logo passou a se dedicar a raridades, fincando raízes entre aquelas ruas da República onde funcionavam tantas editoras e passeavam os 
intelectuais.
          Maristela foi a única de seis irmãos picada pela bibliofilia. Trabalha na loja desde 1983 e assu- miu de vez com a morte de Líbano, aos 66 anos em 1993, três meses depois do nascimento do filho dela, Murilo—hoje o único outro funcionário da loja além da mãe, com quem zela por um acervo de mais de 300 mil exemplares. “O papel da Livraria Calil não é comprar e vender livros, é manter o livro no mercado”, diz ele, um jovem alto e de fala rápida, apontando que custou a aprender essa lição. 
“Fazemos isso seja guardando os livros, comprando, restaurando, encadernando.”
          Para explicar melhor, mãe e filho relembram um caso sem citar nomes —e a expressão “não posso dizer quem foi” se repete à exaustão durante toda a entrevista, para proteger clientes. Certa vez, a dupla se recusou a fazer uma venda para um agente estrangeiro cheio de dinheiro quando teve a impressão de que isso levaria uma edição única de um clássico brasileiro a sair de sua terra para nunca mais voltar. São as delicadezas do negócio dos livros raros, que busca o lucro, sim, mas também cuida da memória. Murilo tira do estoque uma edição especial dos “Poemas da Negra”, escritos por Mário de Andrade em 1929 e acompanhados de desenhos de Di Cavalcanti, marcada com o número183—a tiragem feita pelo modernista teve pouco mais de 450 exemplares. “É raríssimo, você não acha outro de jeito nenhum”, ele diz, empolgado. “Está à venda por R$ 10 mil, mas, se uma pessoa aparecer para comprar, eu acho que não vendo. Algumas obras valem mais que o dinheiro. Se eu vender, não vou 
mais ver essa obra novamente.”
          Mãe e filho folheiam junto com o repórter livros como um tratado de medicina de 1567, um registro detalhado de alforrias de escravizados datado de março de 1887, primeiras edições de “Dom Casmurro” e “Macunaíma”, um “Casa de Alvenaria” com a assinatura de Carolina Maria de Jesus. Um negócio como esse, com solidez financeira suficiente para guardar seu imenso acervo naquele andar na rua Barão de Itapetininga, não é simples de gerir. Às vezes, uma boa venda a um colecionador já adianta bem o mês —uma só edição inaugural de “Os Sertões” sai por R$ 18 mil. E bibliotecas às vezes querem começar a cultivar um acervo de raridades com compras de baciada, o que também pode virar uma negociação de maior escala. Então os livreiros têm dificuldade para estimar o tíquete médio da loja —“eu tenho livro de R$ 1 e tenho manuscritos em que posso cobrar o preço de um apartamento”, 
resume o jovem.
          Se o colecionador endinheirado é quem abastece os cofres, Maristela fala com gosto dos clientes nada especializados que visitam o espaço sem compromisso, como um casal de 20 e poucos anos que passeava pela Calil quando a equipe da reportagem chegou. “Muito se fala que jovem não lê, mas não é oque se vê nessa livraria”, diz ela, satisfeita, logo que começa a conversa. Aí brilha o orgulho da herdeira de um grande livreiro que, quando diz que está pensando em se aposentar dali, soa bem pouco convincente.
          “Às vezes eu até tento ir a uma feira de antiguidade , um bazar, pensando que não vou comprar nada, mas não consigo. Sempre tem alguma coisa chamando”, diz Maristela, suspirando. “Eu não posso fazer nada, sou uma salvadora de livros.” Se a declaração da bibliófila, nascida em 1962, tem alguma coisa de heroica, vem calcada mesmo em um mito fundador. ALivraria Calil, sobre a qual ela reina no nono andar de uma galeria comercial no centro de São Paulo, se orgulha de ser a mais antiga da cidade. Há mais de 75 anos, compra e vende livros novos e usados, comuns e raros, recentes e quase arcaicos —sempre com predileção pelas últimas opções. A livreira tem um jeito mais lírico de definir seu métier. “Eu tento fazer com que o livro passe de uma mão para outra e vá circulando.” A função de Maristela Calil, como foi a de seu pai antes, é impedir que a morte de um grande leitor signifique a morte de seus 
livros.
(Fonte: Folha de S.Paulo - 07.02.2025)