No número 28 da Place Vendôme, em Paris, funciona a Charvet, a primeira camisaria da história. A abertura da loja, em 1838, foi uma resposta à moda da época: os dândis aristocratas precisavam de uma peça de baixo ajustada ao corpo para exibir sob os coletes. Herdeira direta da lingerie do século XVIII – na falta de banho frequente, a camisa de baixo, disforme e folgada, era trocada em nome da higiene -, ela ganhou o colarinho, colocado em evidência pelo colete fechado, e os cortes curvos na altura das axilas e do pescoço.
A história da Charvet impressiona tanto quanto a discrição dos donos, que, em tempos de rede social e de altas somas investidas em marketing, não se preocupam sequer com o site, constantemente em pane. A maioria dos CEOs se apressaria em contar que o fundador, Joseph-Christophe, era filho de Jean-Pierre Charvet, responsável pelo guarda-roupa de Napoleão I, e que a prima Louise fazia as camisas de baixo do imperador. Joseph-Christophe inventou o negócio de vender os tecidos, medir o cliente e fabricar as peças num mesmo endereço. É dele a autoria da gola dobrada, em uso até hoje.
Anne-Marie Colban, responsável pelo negócio ao lado do irmão Jean-Claude, mal toca no assunto. Depois de muita insistência, ela confirma uma das lendas em torno da loja: sim, Boy Capel, amante de Coco Chanel, era cliente inclusive do perfume Charvet, do início do século XX. O frasco é idêntico à embalagem do Chanel n°5, criado décadas depois. A proprietária também se desvia do assunto quando questionada sobre quem entra no elevador que leva ao 2º andar, o santuário das camisas sob medida (o térreo é dedicado a gravatas, roupões, lenços de seda).
“Ninguém quer que seu médico fique contando quem passou pelo consultório”, justifica. Mas é notório que vários chefes de Estado (de Jacques Chirac a Barack Obama), monarcas (príncipe Charles, hoje rei Charles III, da Inglaterra, ao sultão Abdul Hamid, da Turquia), artistas e escritores (de Henry Matisse a Oscar Wilde) passaram por ali. Sem esquecer a modelo Kate Moss, a atriz Uma Thurman e a diretora Sofia Coppola, freguesas assumidas.
O ponto é o único com o serviço de modelos sob medida, responsável por 60% do faturamento; os corners nos Estados Unidos, no Japão e na Inglaterra vendem o prêt-à-porter. “Nossa produção tem limites”, diz ela sobre os ateliês em Saint-Gaultier, no centro da França. Se no prêt-à-porter as camisas são vendidas a partir de 305 euros, os modelos únicos custam entre 535 e 1 040 euros, devido ao tecido. São mais de 6 000 tipos, incluindo uma seleção de centenas de azuis e mais de 500 brancos (por ora, o mais em voga é o avioletado, desbancando a era dos azulados, enquanto os amarelados são os favoritos no Oriente Médio). Jean-Claude se ocupa dos segredos da tecelagem, que vão desde a análise do fio de algodão até o controle do tingimento natural feito no fio, que garante a gama enorme de nuances.
O ritual do 2º andar não mudou desde a criação da maison, que passou de geração para geração até 1965, data em que os Charvet, sem herdeiros, venderam o negócio para Denis Colban, o principal fornecedor de tecido e pai de Anne-Marie e Jean-Claude. No primeiro encontro, o cliente vai, durante mais de uma hora, medir as proporções de seu corpo. Até o lugar exato de cada botão, feito de conchas australianas, é calculado.
Dez dias depois, vêm a prova do protótipo de algodão branco e a escolha do tecido final. Até poder vesti-la, terão se passado cerca de cinco semanas. Cada comprador tem seus dados anotados em fichas de papel, guardadas em gavetinhas. “São mais confiáveis do que os computadores”, explica Anne-Marie. O dossiê serve para as próximas encomendas, que podem ser feitas a distância, graças ao envio de amostras de tecido. “Fiquei sabendo que algumas marcas fazem a pessoa entrar em uma espécie de cabine de raios-X para tirar as medidas do corpo! Elas esqueceram a dimensão humana da nossa profissão”, critica Anne-Marie.
(Fonte: Veja-sp-26.06.2015)