A história da Caninha Pelé, a cachaça que morreu antes de ter nascido, tem detalhes bem reveladores. O episódio parece ter sido uma grande lição para Edson Arantes do Nascimento, então com 18 anos.
Pelé voltara da Copa de 1958 como revelação; o Brasil fora campeão mundial de futebol pela primeira vez; o velho complexo de vira-lata parecia estar com seus dias contados.
O jovem que despontava no Santos não era ainda o incontestável Rei do Futebol que se tornaria, mas tornara-se, sem dúvida, um astro pop, com seu sorriso e jeito de bom garoto.
Com isso, claro, muitas empresas se interessaram em ligar seus produtos à marca do astro. Uma dessas empresas foi a Chiabrando & Amandola Ltda.
A empresa fora fundada em 1954, em Guarulhos, na grande São Paulo, por dois imigrantes italianos: Franco Chiabrando e Vincenzo Amandola.
A empresa não contava com um portfólio de grande destaque. Tinha como carro-chefe o conhaque de ameixas – bebida em voga na São Paulo daquela época – com a marca Alba.
O nome Alba também batizava um “vinho superior”, com uma embalagem caprichada, empalhada, típíca dos vinhos chianti.
Ao longo da década de 1950, o casal Jan Bastiaan e Ana Margaret associou-se aos italianos e a empresa cresceu, aumentando seu capital e se mudando para uma sede maior, na Avenida Emílio Ribas, em Guarulhos.
Com a vitória na Copa de 1958, veio a ideia de ligar o nome Pelé a uma bebida popular, a cachaça.
O nome cachaça, na época, não era dos mais utilizados nos rótulos de bebidas. Os mais comuns eram “aguardente de cana”, “cana” ou “caninha”, muitas vezes acompanhados de adjetivações como “fina”, “finíssima” ou “superior”. Daí a opção por Caninha Pelé para batizar a cachaça do atleta.
Os sócios procuraram o pai de Pelé, o ex-jogador Dondinho, e propuseram o negócio. Segundo informações da Folha de São Paulo, o valor negociado foi multiplicado por dez ao longo das tratativas e alcançou uma cifra que seria equivalente hoje a R$ 366 mil, por um contrato de dez anos.
Nada mal para quem, naquele momento, ainda era o nono maior salário do clube que defendia, o Santos. E era mais do que Dondinho, atacante especialista em cabeceio que teve a carreira abreviada por uma entrada dura que lesionou seu joelho, recebera em toda a sua jornada por clubes de futebol de Minas Gerais e São Paulo.
O pai do craque topou e a cachaça começou a ser produzida, em Piracicaba, interior de São Paulo.
A bebida ganhou um belo rótulo em que a figura de Pelé, voltando da Suécia, com o paletó azul, após ter conquistado o mundo com seu futebol, se destacava. No rótulo, constava ainda a graduação alcoólica: “até 54º GL”.
Aí entra na história um personagem importante: Zito, o capitão do Santos. Mas, antes dele, há uma outra figura que exerceu um papel indireto nessa história: Vasconcelos, o antecessor de Pelé na artilharia do Peixe.
Vasconcelos estava presente quando Dondinho, vindo de Bauru (SP), entregou Pelé, então com 15 anos, aos cuidados dos jogadores mais experientes do Santos. E se comprometeu a cuidar do garoto.
Boêmio inveterado, frequentador dos cabarés santistas, era o menos talhado para a tarefa. Mas cumpriu-a com denodo. Em episódio lendário, viu o garoto Pelé com um copo de bebida na mão na festa de aniversário do goleiro Manga e cruzou o salão resoluto, arrancando o copo da mão do garoto e lhe passando uma reprimenda. Desde então, o moleque não se atreveria mais a se aproximar de bebida.
Vasconcelos acabou se contundindo seriamente pouco depois do episódio, abrindo espaço para Pelé, poucos meses depois, assumir a camisa 10.
Zito já era o capitão do Santos, aonde chegara em 1952. O volante marcador era chamado “Gerente” e tinha forte influência sobre toda a equipe, não poupando de suas broncas nem Pelé, nem nenhum outro atleta.
Em 1958, embarcara para a Copa da Suécia levando Pelé, então com 17 anos, sob suas asas. "Era
uma figura paterna para mim, quando entrei para o Santos e, ao longo dos anos, tornou-se um grande mentor e um ótimo amigo. Representamos o Brasil em todos os lugares”, lembraria Pelé quando da morte do amigo, em 2015.
Pelé, vacinado pelas broncas de Vasconcelos, contou para Zito sobre a jogada do pai com Franco Chiabrando e seus sócios.
O "gerente" percebeu que não seria uma boa ideia ligar o nome de um atleta tão jovem a uma marca de bebida alcoólica, sobretudo uma bebida que não tinha, naquele momento, um status social dos mais elevados, sofrendo constantemente limitações ao seu consumo por parte das autoridades. Declarou-se contra e ainda convocou Pepe para opinar. O ponta concordou com o capitão.
Pelé desfez o acordo e a empresa teve que recolher o primeiro lote, que já começava a circular pelo comércio. É claro que algumas garrafas acabaram espalhadas, adquirindo imediatamente o status de raridade que só cresceu com o tempo.
Pelé, à época, aproveitou a deixa para prometer que jamais faria propaganda de cigarros e bebidas. Em 1961, registrou seu apelido-marca junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e, desde então, vende café, chocolate, pilha, cartão de crédito e o escambau.
Já virou até personagem de quadrinhos. Mas, seguindo os conselhos de Vasconcelos, o craque-boêmio, e de Zito, o “gerente”, ficou longe da cachaça.
Quanto à empresa Chiabrando & Amandola, os sócios acabaram se separando. Franco Chiabrando seguiu atuando na década de 1970 como distribuidor, expandindo seu negócio para alimentos e para o mercado pet. E, provavelmente, sempre lamentando a perda do negócio que idealizou de forma pioneira nos anos dourados do futebol brasileiro.
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