A trajetória profissional de Cardin começou cedo, aos 14 anos, quando ele arrumou emprego de aprendiz de alfaiate em Saint-Étienne. Aos 17, foi trabalhar na Christian Dior, em Paris. “Eu era o primeiro a chegar ao ateliê”, recorda o estilista, que, aos 28 anos, conseguiu fundar a própria “maison”. “Sou responsável pelo meu sucesso.
Eu me dei bem desde o início.” O que poderia parecer impossível para outros não foi um problema para Cardin. Como fazer o primeiro desfile de moda na praça Vermelha de Moscou, em 1991, ou se tornar o primeiro costureiro a integrar a Academia de Belas Artes da França, em 1992.
O
estilista francês Pierre Cardin gostava de
se gabar de tudo o
que havia conquistado desde
que fundara sua marca, em
1950. Quando recebeu um repórter em seu estúdio na Avenue de Marigny, em Paris, em
1999, exibiu grandes fotos em
preto e branco de sua fábrica
na França da década de 1970;
fotos dele com modelos na Praça Vermelha em 1986; itens
com o logotipo Cardin produzidos por centenas de licenças; e um catálogo de seus
looks futuristas mais famosos.
“Influenciei todos os estilistas”, disse ele. “Todo mundo
conhece Pierre Cardin.” O
que ele não gostava de comentar era sobre o que seria de sua
empresa depois que ele partisse. Três meses antes de Cardin morrer – em dezembro de
2020, aos 98 anos, após complicações de covid-19 –, ele disse a um repórter da Paris Match: “Depois da minha morte?
Não penso sobre isso. Não organizei nada. Nada!”.
Cardin chegou ainda criança à França, quando seus pais fugiram da Itália de Benito Mussolini após a Primeira Guerra Mundial. O clã Cardini se estabeleceu em Saint-Étienne, no centro do país, e o nome foi abreviado para Cardin. Cardin estudou arquitetura, mas seu amor pela moda foi mais forte. Ele chegou a Paris depois da Segunda Guerra Mundial e trabalhou para as casas de alta costura Paquin e Schiaparelli antes de conseguir um emprego no estúdio de um jovem designer chamado Christian Dior.
Entre os conjuntos que Cardin cortou e costurou para a coleção de estreia de Dior, em fevereiro de 1947, estava o Bar, um terninho ampulheta preto e branco que passou a simbolizar o “new look” da casa.
Três anos depois, em 1950, Cardin fundou sua própria grife e ganhou reputação no ano seguinte, quando desenhou trinta figurinos para o extravagante baile de máscaras de Carlos de Beistegui, em Veneza, Itália.
Em 1958, Cardin lançou a moda masculina, que ainda é um negócio forte para a marca. Também se credita a ele a invenção do bubble dress, um corpete justo com uma saia rodada na altura dos joelhos.
Dos movimentos da pop art da década de 1960, ele abraçou o futurismo, criando roupas modernas em formas geométricas e cores ousadas.
Em 1970, contratou como assistente um parisiense de 18 anos chamado Jean Paul Gaultier. “Pierre inventava coisas”, disse Gaultier em entrevista ao The New York Times, em 2018. “Foi a verdadeira modernidade.” Cardin também enxergou longe no mundo dos negócios: vendeu nos mercados de luxo do Japão na década de 1950, da China, na de 1970 e da União Soviética, na de 1980. E se tornou o rei das licenças, colocando seu logotipo em tudo, de perfumes a frigideiras. Em 1981, comprou a Maxim’s, joia da culinária art nouveau.
Nas horas vagas, Cardin comprava imóveis – muitos deles próximos do Palácio do Eliseu, casa oficial do governo francês –, nos quais instalou sua residência e a sede de sua empresa. Ele também tinha um moinho na Normandia; um apartamento na Quinta Avenida, em Nova York; o Palazzo Ca’ Bragadin, do século 13, em Veneza, onde Casanova viveu; o Chateau de Théoule, do século 17; o vanguardista Palais Bulles, na Côte d’Azur; o Château de Lacoste, do século 11; e a antiga casa do Marquês de Sade, na Provença, além de dezenas de apartamentos e casas na aldeia próxima.
Pierre Cardin, nascido Pietro Costante Cardin, em 2 de julho de 1922, faleceu em 29 de dezembro de 2020.
A falta de organização prevendo a sua morte gerou uma épica batalha jurídica
entre 22 sobrinhas e sobrinhos-netos que afirmam ser
seus herdeiros, uma vez que
ele nunca se casou nem teve filhos. Seu companheiro de longa data nos negócios e na vida,
André Oliver, morreu em 1993.
De um lado dessa luta está
Rodrigo Basilicati-Cardin, neto italiano de 52 anos do irmão
mais velho de Cardin, Erminio. (Pierre Cardin, nascido
Pietro Cardini em 1922, perto
de Treviso, Itália, era o mais
novo de treze filhos). Basilicati-Cardin – que adotou o nome Cardin em 2018 – trabalhou para o tio-avô por mais
de vinte anos. Desde 2020, é
gerente geral da holding Pierre Cardin Evolution e diretor
artístico da marca Pierre Cardin. Recentemente, organizou um desfile de moda Pierre
Cardin na sede do Partido Comunista Francês, em Paris.
Basilicati-Cardin insiste que
é o herdeiro legítimo – um herdeiro designado por Cardin,
por testamento não assinado e
não registrado. Seu irmão e sua
irmã apoiam a reivindicação.
Ele quer manter a propriedade
da empresa e continuar no comando dos negócios.
No outro campo, estão 19
primos de outros seis ramos familiares, que querem vender a
empresa e ficar com o dinheiro. Quatro dessas primas, Patricia, Laurence, Régine e MarieChristine (netas de Giovanna
Cardin, irmã de Cardin), entraram com ações judiciais e queixas criminais contra BasilicatiCardin, acusando-o de crimes
como abuso de idosos e falsificação. Ele, é claro, nega.
“É triste que uma casa tão
histórica chegue a este ponto”,
lamenta, com melancolia,
Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, que trabalhou com ele por vinte anos e
foi demitido por Basilicati-Cardin dias depois da sua morte.
Basilicati-Cardin, nascido e criado em Pádua, na Itália, era engenheiro civil de formação quando, aos 25 anos, conheceu seu famoso tio numa exposição de arte em Veneza. “Ele disse: ‘Me fale sobre você’. E passamos duas horas conversando”, explicou o engenheiro em entrevista ao Times. “Aí ele disse: ‘Por que você não vem morar aqui, no meu palácio?’” Cardin contratou Basilicati-Cardin para supervisionar a fonte toscana que fornecia a água mineral Maxim – e, um pouco mais tarde, várias outras empresas sediadas na Itália. Em 2018, o estilista o nomeou gerente-geral da holding. Foi então que Basilicati, como era conhecido, decidiu acrescentar Cardin a seu nome. “Fui à Câmara Municipal de Treviso e fiz todos os trâmites administrativos”, disse a La Gazette Drouot.
O que está em disputa é sua enorme herança – e muito mais.
“Fiquei surpreso com a família, porque meu tio me disse
que queria que a empresa continuasse e não fosse transferida
para eles”, diz CardinEdwards, 39 anos, o único parente a trabalhar com Cardin
no estúdio. Ele não é herdeiro,
mas sua mãe, Marie-Christine,
é (ela está entre as quatro irmãs que entraram com a ação
judicial). “Meu tio não entendia o conceito de herança familiar, ele era contra”, relembra
Cardin-Edwards.
Mas Cardin também se recusava a falar do assunto. “Toda
vez que dizíamos: ‘Vamos ao
cartório botar isso no papel’,
ele cancelava no último minuto”, diz Edwards. “Não conseguia imaginar alguém a substituí-lo.” Emmanuel Beffy, que
Cardin contratou para supervisionar licenças, negócios imobiliários e projetos culturais
na Ásia, concorda: “Ele não
queria entregar o poder. Quis
mantê-lo até o fim”.
Embora Basilicati-Cardin detivesse um cargo importante na
empresa, Jean-Louis Rivière, o
advogado que representa as
quatro irmãs, avisa: “Ele não tinha o direito de assinar contratos ou de vender nada. Nenhum
tipo de poder”. Basilicati-Cardin, por sua vez, diz que o acordo era prepará-lo para, com o
tempo, assumir os negócios.
Tudo isso mudou no final
de 2020. Enquanto estava gravemente doente, após uma infecção por covid-19, Cardin
concedeu uma procuração a
Basilicati-Cardin. Rivière descreveu a assinatura do documento como “suspeita”, uma
vez que, segundo ele, Cardin,
“estava em coma, ou semicoma, na época”. Não foi bem
assim, diz Basilicati: o documento foi assinado por Cardin em casa, perante um tabelião e dois médicos que atestaram sua capacidade mental. As irmãs Cardin acusaram o
primo de abuso de idosos, fraude e quebra de confiança. A promotoria de Paris abriu uma investigação no início deste ano.
O mais perturbador para a
família é a afirmação de Basilicati-Cardin de que ele é o único herdeiro. Ele afirma que os
desejos de Cardin foram detalhados em um testamento em
10 de novembro de 2016, que
Basilicati-Cardin afirma ter
descoberto no ano passado no
apartamento do estilista em
Paris – bem no momento em
que os herdeiros que querem a
venda receberam a oferta de
um grupo empresarial francês
para comprar o grupo por E 800 milhões (RS 4,2 bilhões).
Como o testamento não foi
encontrado durante o inventário original dos bens e, embora
rubricado, não foi assinado e registrado junto às autoridades,
as quatro irmãs o consideram
inválido. Beffy também está cético: “Pierre Cardin sempre assinou documentos como ‘Pierre Cardin’, não com iniciais.”
Em março de 2023, um juiz declarou
o testamento inválido, decisão
da qual Basilicati apelou. O tribunal de apelações de Paris ouvirá os argumentos no dia 2 de novembro de 2023 e deverá
decidir logo. “Há
duas possibilidades de resolução”, diz Rivière. “Ou o testamento de Basilicati é cancelado e meus clientes e seus primos são legitimados como herdeiros, ou é confirmado e ele
fica com o controle de tudo.”
Para complicar, Beffy possui outro testamento de Cardin, de 2013.
Nele, o estilista afirmava que
Beffy receberia a mansão Norman; Marie-Christine Cardin-Edwards ganharia um
apartamento; e Beffy e Basilicati-Cardin herdariam tudo o
que “se move”, ou seja, móveis, carros, joias, obras de arte e contas bancárias. O documento estava assinado e datado, mas, diz Beffy, “o tabelião
não o registrou”.
Há também a questão da
propriedade da empresa. No
momento da morte, Cardin detinha 99,999% dela. O 0,001%
restante está com BasilicatiCardin, que disse que sua tia avó Giovanna, mãe das quatro
irmãs que o processam, assinou esse documento para ele
um mês antes de morrer em
2000, aos 97 anos. “Impossível”, garantem as irmãs.
De seu lado, CardinEdwards confirma: “Eu a vi naquele mês e ela não me reconheceu, então acho difícil que
tenha assinado um documento tão importante”. Todos
aguardam o julgamento. Compradores potenciais estão de
olho, caso a família consiga colocar a empresa à venda. “Estamos serenos”, diz Rivière. “E
acreditamos na justiça.”
(Fonte: Valor - 01.11.2019 / NY Times/Estadão 13.10.2023 - partes)