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2 de jul. de 2020

Wirecard

          A Wirecard foi fundada em 1999, num contexto em que a bolha do dotcom atravessava os seus melhores dias. Começou funcionando como um processador de pagamentos online, permitindo aos sites recolher o pagamento dos consumidores e se tornou um grande player de sistema de pagamento.
          O austríaco Markus Braun, nascido em 1970, CEO da Wirecard, vive em Viena, e ingressou na empresa de Munique em 2002, quando era uma startup iniciante e à beira do colapso. Especialista em ciência da computação e auto-descrito “otimista patológico”, ele havia trabalhado anteriormente para o negócio de consultoria da KPMG.
          Ele criou a Wirecard, oferecendo inicialmente seus serviços a sites de pornografia e jogos, desenvolvendo negócios que outras empresas de pagamento online costumavam evitar.
          Em 2005, a empresa entrou na Bolsa de Frankfurt e um ano mais tarde Braun abriu uma divisão bancária, que emitiu cartões de crédito Visa e Mastercard. Com a aquisição do banco online XCOM expandiu-se para o setor bancário e, além de poder emitir cartões de crédito podia gerir fundos.
          As perguntas sobre as finanças da Wirecard começaram a surgir em 2008, depois que o chefe de uma associação acionária alemã alegou que as contas consolidadas da empresa em 2007 eram incompletas e enganosas. A Wirecard contratou a EY, anteriormente Ernst Young, para realizar uma auditoria, que não mostrou irregularidades. Um autor do relatório da associação foi processado e preso por não divulgar posições de short que ocupava nas ações da Wirecard, das quais lucrou quando o preço das ações caiu. A EY que passou a ser a sua auditora.
          Os lucros aviltados permitiam à Wirecard financiar operações de expansão, já que as ações e obrigações que emitia eram bastante procuradas pelos investidores. Braun foi construindo a sua fortuna e tornou-se multimilionário. Chegou a contribuir com €70 000 euros para a campanha do chanceler austríaco Sebastian Kurz, que governou o país em coligação com a extrema-direita.
          Nos corredores de elite corporativa da Alemanha, Markus Braun havia se tornado uma lenda. Um empresário pouco conhecido até poucos anos atrás, Braun transformou uma empresa bávara obscura chamada Wirecard em um ícone de tecnologia alemão, conquistando um lugar cobiçado no índice de referência DAX. A Wirecard forneceu uma rede financeira invisível que, com uma onda de plástico sobre um leitor de cartão em quase qualquer lugar do mundo, fez as transações acontecerem. Os fundos de hedge e os investidores globais lutaram para comprar ações.
          A Wirecard entrou no índice DAX em setembro de 2018, derrubando o robusto Commerzbank e causando uma sensação no país.
          Embora a Wirecard fosse menor e menos conhecida globalmente do que rivais como o PayPal, as críticas foram vistas como um ataque a uma história de sucesso local. A empresa chamou a atenção do regulador financeiro da Alemanha, BaFin, que investigou as pessoas que estavam fazendo as perguntas – com frequência vendedores a descoberto, que poderiam ganhar com a queda de ações, e jornalistas -, em vez das repetidas alegações de trapaças financeiras.
          A Wirecard continuou a prosperar, fazendo com que os pagamentos sem contato parecessem fáceis e atraindo o que diziam ser milhares de novos comerciantes. Entre 2011 e 2014, a empresa captou 500 milhões de euros de acionistas e iniciou uma expansão internacional agressiva. A empresa comprou pequenas empresas de pagamentos de terceiros, denominadas adquirentes de comerciantes em toda a Ásia, atraindo mais investidores e aumentando o preço das ações.
          O escândalo contábil centra-se em contas de garantia estabelecidas por várias dessas empresas, o que permitiu à Wirecard operar em países onde não possuía uma licença, incluindo Cingapura, Indonésia, Malásia, Dubai e outros.
          Os adquirentes comerciais, que fornecem aos varejistas terminais de pagamento com cartão de crédito que foram então conectados ao sistema de pagamentos da Wirecard, geraram uma grande parcela de receita e lucro para a empresa ao longo dos anos. Eles deveriam ter depositado receita para a Wirecard nas contas de garantia. Mas a empresa disse recentemente que os fundos podem nunca ter existido.
          Em 2015, os problemas começam a tornar-se mais claros. Nesse ano, o Financial Times publicou uma série de artigos intitulada “House of Wirecard”, na qual levantava várias dúvidas sobre a solidez das contas da empresa. A investigação jornalística levou o FT a suspeitar que pudesse haver um buraco de 250 milhões de euros no balanço da empresa, o que não a impediu de continuar a adquirir empresas concorrentes e expandir o seu negócio (sobretudo, na Ásia).
          O escrutínio cresceu quando a Wirecard comprou uma empresa de pagamentos indiana por 340 milhões de euros em 2015, seu maior negócio até então. Naquele ano, a J Capital Research, que fornece serviços de consultoria em investimentos, publicou um relatório declarando que as operações da Wirecard na Ásia eram menores do que a empresa havia levado os investidores a acreditar. A Wirecard acusou os vendedores a descoberto de pagar pelo relatório.
          Em 2016, após novas denúncias anônimas de ilegalidades e de associação a esquemas de lavagem de dinheiro, a Wirecard refutou as acusações. Ao mesmo tempo, vários jornalistas, investigadores e investidores começaram a ser alvo de uma campanha de hacking, embora a sua origem não seja conhecida. Certo é que, no ano seguinte, uma nova auditoria da EY confirmou a saúde financeira da empresa e entusiasmou os investidores, com o valor das ações da empresa disparando. Ao mesmo tempo que a Wirecard se tornava a maior fintech da Europa, o seu CEO, Braun, garantia em setembro de 2018, que os lucros não deixariam de aumentar. Faltavam poucos meses para o início do colapso.
          Braun estava se movendo mais para os holofotes, tornando-se um orador da lista A em conferências de tecnologia e pagamento, onde foi aclamado como um “herói” e “estrela do rock” e, finalmente, começou a usar gola alta preta no estilo Steve Jobs. Ele promoveu o conceito de uma sociedade totalmente sem dinheiro físico da qual players como Wirecard se beneficiaram e previu que todos os pagamentos de varejo seriam digitais dentro de uma década.
          Em abril de 2019, a BaFin apresentou uma queixa criminal contra vários vendedores a descoberto e dois jornalistas do Financial Times depois que a Wirecard os acusou de denúncias negativas para reduzir o preço das ações.
          No final de 2019, à medida que surgiram mais relatos de suspeitas de irregularidades, a empresa atrasou o relatório anual da EY para 2019 e contratou a KPMG para fornecer uma avaliação independente de seus livros-caixa.
          A auditoria, lançada em abril de 2020, fez pouco para apagar o fogo crescente. Na descoberta mais séria, cobrindo 2016 a 2018, a KPMG disse que não conseguiu verificar a existência de 1 bilhão de euros em receita que a Wirecard registrou através de três parceiros adquirentes.
          Como os investidores institucionais pediram que ele se demitisse, Braun permaneceu desafiador, dizendo que a auditoria não havia encontrado evidências de irregularidades. Ele se recusou a reformular as contas da Wirecard por esses anos.
          No início de junho de 2020, a Wirecard era considerada uma das empresas financeiras mais bem-sucedidas na Alemanha. Agora, está envolvida num escândalo de enormes proporções, que implicaram a falência da empresa, a detenção do CEO e o repúdio do país. O que explica a ascensão e queda desse gigante do sistema financeiro? 
          Depois de uma denúncia de fraude nas operações da empresa em Singapura, as investigações começaram a revelar os seus profundos problemas: metade dos lucros reportados pela Wirecard era gerada por empresas subcontratadas (que geriam os pagamentos e pagavam uma comissão à gigante alemã, em regime de outsourcing), algumas sedes da empresa eram na verdade edifícios abandonados ou pertencentes a famílias pobres nas Filipinas, e nova auditoria da KPMG levantou dúvidas sobre os lucros que a empresa reportava em Singapura e na Irlanda.
          Os reguladores financeiros alemães redirecionaram seu escrutínio dos críticos para a própria empresa. Em 5 de junho de 2020, os promotores invadiram a sede da Wirecard e abriram processos contra a administração por suspeita de divulgar informações enganosas que possam ter afetado o preço das ações da Wirecard. Em 17 de junho, a EY disse que não publicaria seu relatório anual e auditoria atrasados, porque não poderia contabilizar o 1,9 bilhão de euros que faltam. Braun e o conselho disseram que a empresa foi vítima de fraude. Mas dois dias depois, Braun estava fora.
          O escândalo financeiro da Wirecard, a estrela das fintechs europeias, colocou a governança corporativa e a regulamentação do setor na Alemanha em xeque.
          Em junho de 2020, a Wirecard acabou por ser forçada a admitir que há 1,9 bilhão de euros “desaparecidos” e que as contas apresentadas no passado podem não ser fiáveis. Isso levou o então CEO Markus Braun a pedir demissão, para logo em seguida ser preso por suspeita de falsificação de contas – ele foi solto em seguida após pagar fiança de 5 milhões de euros. O caso levou as ações da Wirecard, até então negociadas em torno de 104 euros, a caírem 98%, batendo uma mínima de 1,28 euro.
          O escândalo da Wirecard expõe alguns problemas de fundo no que toca à ascensão das fintechs, empresas tecnológicas que, não sendo bancos, desenvolvem operações financeiras e de gestão de créditos. A “finança sombra”, como foi apelidada, desenvolve esse tipo de atividades à margem da regulação bancária. Há quem olhe para este escândalo como um ponto de viragem no que toca à regulação – o ministro das Finanças alemão, Olaf Scholz, disse que é preciso “repensar as estruturas de supervisão”. A BaFin (a autoridade federal de supervisão financeira alemã) tem estado sob fogo cerrado, com várias críticas à complacência da instituição perante a estrela das fintechs alemãs. 
          No entanto, o problema parece ser estrutural. Prova disso é a relação entre as empresas e as auditoras (particularmente, as Big Four, onde se inclui a EY), que são pagas para verificar as contas e, não raras vezes, fornecem outros serviços de consultoria e planejamento fiscal às mesmas empresas que auditam. Não surpreende, por isso, que a EY tenha passado vários anos sem reconhecer os problemas da Wirecard. Ao mesmo tempo, a indefinição em torno de quem tem o poder e os meios para supervisionar as fintechs abre espaço para as ilegalidades. Talvez por isso o crescimento da "finança sombra" nos últimos anos seja encarado como um dos maiores riscos para a economia global.
          A empresa de pagamentos se torna a primeira do índice alemão DAX a falir, isso apenas dois anos após entrar para o benchmark, que reúne as 30 principais empresas do país. Na época, a Wirecard chegou a superar por um tempo o Deutsche Bank em valor de mercado, a US$ 28 bilhões.
          Essa confusão e surpresa têm levado o caso a ser chamado de “Enron da Alemanha” em referência à empresa de energia americana Enron, que quebrou no início dos anos 2000 ao fraudar seus dados, que na época eram auditorados pela Arthur Andersen, que por sua vez foi processada e condenada por obstrução de Justiça, precipitando a queda da quinta maior empresa de auditoria do mundo. Outra comparação que se faz é com a crise de 2008. Mais de uma década depois do colapso financeiro confrontamo-nos com a mesma questão.
          Agora, a EY também começa a sofrer os impactos. Ainda antes da bomba da Wirecard explodir, o escritório de advogados Schirp & Partner entrou com uma ação na Justiça contra a empresa de auditoria, acusando-a de violar “as obrigações de controle de um auditor”. Segundo a revista Der Spiegel, o conglomerado japonês Softbank planeja fazer o mesmo.
          O caso está pesando bastante para a EY. Isso porque, desde janeiro de 2019, o Financial Times já havia apontando para irregularidades nos números da Wirecard, que estaria usando contratos falsificados e antigos no escritório de Cingapura para aumentar sua receita.
          O jornal descreveu uma prática chamada de “round-trip”, onde, supostamente, uma série de transações potencialmente duvidosas são feitas além-fronteiras para várias unidades, a fim de fazê-las parecer legítimas para os auditores locais. Em outubro de 2019, o FT voltou a acusar a empresa, dessa vez dizendo que funcionários da equipe financeira pareciam conspirar para inflar as vendas e os lucros das subsidiárias em Dubai e Dublin e potencialmente enganar a EY.
          A companhia sempre negou as acusações e chegou a processar o FT, acusando o jornal de conspirar em conjunto com quem estava vendido (short) nas ações. Uma investigação independente do escritório de advocacia RPC, porém, não encontrou evidências de conluio. Em 26 de junho de 2020, a Wirecard divulgou um vídeo em que Braun afirma que “não pode ser descartado” que a companhia foi vítima de uma fraude.
          Além do buraco de 1,9 bilhão de euros, que podem nunca ter existido, a empresa deixa ainda 3,5 bilhões em dívidas que os credores poderão não recuperar. A EY reconhece agora ter encontrado “indicações claras de fraude sofisticada e elaborada, envolvendo várias partes em diversas instituições em todo o mundo”. A manipulação das contas, feita para aumentar artificialmente o valor das ações e garantir investidores, pode agora significar a ruína para quem apostou na gigante financeira. Ainda assim, há quem sorria com esse colapso: alguns fundos de investimento, que apostaram na queda da empresa, lucraram 1,5 bilhão de euros numa semana.
          Mesmo diante de todo o caos, alguns investidores ainda têm esperança. As ações da Wirecard disparam 150% em 29 de junho de 2020, valendo 3,25 euros, com rumores de que o grupo francês Worldline pode tentar comprar partes da empresa alemã. Contudo, vale ressaltar que, dado o seu baixo valor de face, essa forte alta está longe de representar uma recuperação para a companhia.
          Afinal, os processos e problemas estão longe do fim, alguns especialistas apontam que a companhia até tem um núcleo saudável, mas tendo falsificado boa parte de suas vendas, ela agora não consegue pagar mais suas dívidas. Se de um lado pode haver algum tipo de salvação, para analistas consultados pelo MarketWatch este é apenas um último rali, ou respiro, antes da derrocada final das ações.
          Mas uma coisa é certa: quem prestasse atenção não deveria ter se surpreendido. Desde 2008, a Wirecard atraiu céticos que se perguntavam como a empresa poderia gerar a receita mundial que alegava. As perguntas, levantadas por analistas e investigadas em uma série de artigos no The Financial Times, foram repetidamente rejeitadas por Braun, cujas ambições globais cresceram com o preço das ações.
          No dia 25 de junho de 2020, o império de Braun desabou depois que a Wirecard entrou com um processo de insolvência, dias depois que a empresa de tecnologia financeira reconheceu que 1,9 bilhão de euros (2,1 bilhões de dólares) que alegava ter em seus balanços provavelmente nunca existiram. Seu auditor de longa data, EY, disse que a empresa havia realizado “uma fraude elaborada e sofisticada”.
           A Wirecard entrou com pedido de insolvência (em 25 de junho) com dívidas de cerca de 3,5 bilhões de euros (US$ 3,9 bilhões). A empresa estava praticamente insolvente. A Mastercard e a Visa disseram um dia depois (26 de junho), que estavam considerando cortar os laços com a Wirecard.
          Em agosto de 2020, a PagSeguro anunciou a compra da Wirecard Brazil, subsidiária da empresa de pagamentos alemã envolvida no escândalo de fraude contábil. O negócio ainda precisa de aprovação do Banco Central do Brasil e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A Wirecard (Brasil) tem R$ 120 milhões em receitas, 200 mil clientes e R$ 5 bilhões em volume total de pagamentos. Ela atua no país como uma subcredenciadora, sendo que iniciou as atividades no país com a compra da Moip, em 2016, por R$ 165 milhões.
(Fonte: einvestidor@estadao.com - 26.06.2020 / The New York Times News Service / Infomoney - 29.06.2020 / Esquerda - 01.07.2020 / ValorInveste - 21.08.2020 - partes)

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