Uma bebida amarga, a invasão de Hitler à Áustria, uma disputa familiar de meio século e um segredo guardado por monges beneditinos. A história do alemão Paul Underberg com o Brasil tem todos esses capítulos e começa de uma maneira não menos singular, em 26 de maio de 1932, quando ele embarcou em um dirigível rumo ao Rio de Janeiro.
A viagem no Graf Zeppelin desde Friedrichshafen, na borda sul da Alemanha, durou cinco dias. Paul era neto de Hubert Underberg, que em 1846 criou um "bitter" digestivo batizado com seu sobrenome. O século 19 disseminou o hábito de se consumir após as refeições bebidas feitas à base de cascas de árvore, raízes, frutas e sementes, que facilitavam a digestão da comida pesada que, naquela época, era conservada em banha animal.
Depois de passar pelas mesas da família real da Itália, da Áustria, da Alemanha e do czar da Rússia, a marca desembarcou no Brasil em 1883, quando o país já acumulava algumas décadas de imigração alemã.
A chegada de Paul à América do Sul (em 1932) era a última etapa de um périplo que passou por quase 50 países, uma viagem sensorial para descobrir novos ingredientes - a essa altura a Underberg já usava ervas de mais de 40 países - e prospectar novos negócios.
Ele foi da Amazônia ao extremo sul do Brasil e chegou à Argentina, onde os descendentes de italianos mantinham o costume dos pais de tomar "amaro", nome que a Itália deu ao "bitter".
De volta à capital carioca, o alemão decidiu que não queria mais voltar para casa. "Paul desembarcou no Rio de Janeiro e encontrou uma sociedade sofisticada, que em nada lembrava a tensão da Europa pré-guerra", diz André Wollny, atual presidente da empresa na América Latina.
Foi no Rio que ele conheceu Erna von Knapitsch, imigrante austríaca que fugira para o Brasil em meados dos anos 30, depois que o exército de Hitler invadiu seu país.
Erna vinha tendo problemas com os soldados que monitoravam a fazenda da família em Kärnten, no sul da Áustria.
"Durante as refeições ela sentava à mesa com os prisioneiros que trabalhavam na fazenda e dava-lhes a mesma quantidade de comida que a família recebia. Isso deixava os soldados muito irritados", conta a atual presidente da empresa, Hubertine Underberg-Ruder, sobrinha-neta de Paul, com base nos escritos deixados pela tia-avó.
Discordante do regime, Erna migrou para a Hungria e depois veio para o Brasil.
Já casados, o alemão e a austríaca construíram uma chácara no Alto da Boa Vista, na zona norte do Rio, e importavam a Underberg concentrada da Alemanha para finalizá-la no Brasil.
Quando a Segunda Guerra Mundial estourou, em 1939, as matérias-primas pararam de chegar à fábrica em Rheinberg, no extremo oeste do Alemanha, e o fornecimento do concentrado da bebida para o Rio foi interrompido.
Paul decidiu então tropicalizar a receita com o que descobriu no norte do Brasil. Naquela época, a Underberg já era um "clássico de botequim" no Rio de Janeiro, diz Wollny.
Quem fazia propaganda aqui era o "seu Tonico Underberg", personagem que repetia nas páginas das revistas o bordão "um cálice por dia dá saúde e alegria".
Com o fim do conflito, em 1945, a matriz na Alemanha retomou a produção e lançou a versão monodose da bebida. A garrafinha de 20 ml, que sobrevive até hoje, foi uma estratégia para retomar as vendas em um país destruído pela guerra, onde não havia praticamente emprego e as famílias viviam com muito pouco.
No Brasil, Paul e Erna ainda vendiam como Underberg uma receita diferente da que saía da fábrica alemã. Já comandada pela quarta geração da família, a sede passou a exigir que a empresa brasileira mudasse o nome da bebida - o que só aconteceria quase meio século depois, em 2005.
Paul morreu de câncer em 1959. Ele e Erna não tiveram filhos. Segundo Hubertine, o contrato assinado pelo tio-avô nos anos 1930 que lhe dava direito de explorar a marca no Brasil também previa que ele a devolvesse à família caso não deixasse herdeiros.
Secretamente, contudo, ele passou a companhia para o nome de sua esposa, que continuou produzindo e vendendo a Underberg "tropicalizada" nas décadas seguintes.
Foram 50 anos de disputa até que, aos 90 anos, a viúva concordou que os Underberg assumissem o negócio.
A versão brasileira foi rebatizada de Brasilberg e a original voltou a ser importada da Alemanha. Em expansão internacional, a Brasilberg hoje é vendida no Paraguai, Uruguai, no México e na Europa e vai ganhar uma nova fábrica no Rio de Janeiro, na cidade de Miguel Pereira, prevista para 2018.
A receita da Underberg é mantida em segredo há 170 anos. Além da família, muito religiosa, a fórmula da bebida sempre foi confiada a pelo menos um padre católico. Não há registro escrito.
"Até pouco tempo eram dois padres na Alemanha, mas nós passamos para um terceiro, mais jovem, porque um deles já está velhinho", diz Underberg-Ruder, que se tornou "Geheimnisträger", algo como "guardiã do segredo", quando se preparava para assumir a empresa, no começo dos anos 2000. No total, seis pessoas dominam o método de produção, chamado de "semper idem". Paul trouxe para o Brasil a tradição, que se mantém até hoje. Aqui, a receita da Brasilberg é guardada por um monge beneditino. Isso é tudo o que Underberg-Ruder fala sobre o assunto. O resto é segredo.
(Fonte: BBC Brasil-msn - 05.09.2017)
A viagem no Graf Zeppelin desde Friedrichshafen, na borda sul da Alemanha, durou cinco dias. Paul era neto de Hubert Underberg, que em 1846 criou um "bitter" digestivo batizado com seu sobrenome. O século 19 disseminou o hábito de se consumir após as refeições bebidas feitas à base de cascas de árvore, raízes, frutas e sementes, que facilitavam a digestão da comida pesada que, naquela época, era conservada em banha animal.
Depois de passar pelas mesas da família real da Itália, da Áustria, da Alemanha e do czar da Rússia, a marca desembarcou no Brasil em 1883, quando o país já acumulava algumas décadas de imigração alemã.
A chegada de Paul à América do Sul (em 1932) era a última etapa de um périplo que passou por quase 50 países, uma viagem sensorial para descobrir novos ingredientes - a essa altura a Underberg já usava ervas de mais de 40 países - e prospectar novos negócios.
Ele foi da Amazônia ao extremo sul do Brasil e chegou à Argentina, onde os descendentes de italianos mantinham o costume dos pais de tomar "amaro", nome que a Itália deu ao "bitter".
De volta à capital carioca, o alemão decidiu que não queria mais voltar para casa. "Paul desembarcou no Rio de Janeiro e encontrou uma sociedade sofisticada, que em nada lembrava a tensão da Europa pré-guerra", diz André Wollny, atual presidente da empresa na América Latina.
Foi no Rio que ele conheceu Erna von Knapitsch, imigrante austríaca que fugira para o Brasil em meados dos anos 30, depois que o exército de Hitler invadiu seu país.
Erna vinha tendo problemas com os soldados que monitoravam a fazenda da família em Kärnten, no sul da Áustria.
"Durante as refeições ela sentava à mesa com os prisioneiros que trabalhavam na fazenda e dava-lhes a mesma quantidade de comida que a família recebia. Isso deixava os soldados muito irritados", conta a atual presidente da empresa, Hubertine Underberg-Ruder, sobrinha-neta de Paul, com base nos escritos deixados pela tia-avó.
Discordante do regime, Erna migrou para a Hungria e depois veio para o Brasil.
Já casados, o alemão e a austríaca construíram uma chácara no Alto da Boa Vista, na zona norte do Rio, e importavam a Underberg concentrada da Alemanha para finalizá-la no Brasil.
Quando a Segunda Guerra Mundial estourou, em 1939, as matérias-primas pararam de chegar à fábrica em Rheinberg, no extremo oeste do Alemanha, e o fornecimento do concentrado da bebida para o Rio foi interrompido.
Paul decidiu então tropicalizar a receita com o que descobriu no norte do Brasil. Naquela época, a Underberg já era um "clássico de botequim" no Rio de Janeiro, diz Wollny.
Quem fazia propaganda aqui era o "seu Tonico Underberg", personagem que repetia nas páginas das revistas o bordão "um cálice por dia dá saúde e alegria".
Com o fim do conflito, em 1945, a matriz na Alemanha retomou a produção e lançou a versão monodose da bebida. A garrafinha de 20 ml, que sobrevive até hoje, foi uma estratégia para retomar as vendas em um país destruído pela guerra, onde não havia praticamente emprego e as famílias viviam com muito pouco.
No Brasil, Paul e Erna ainda vendiam como Underberg uma receita diferente da que saía da fábrica alemã. Já comandada pela quarta geração da família, a sede passou a exigir que a empresa brasileira mudasse o nome da bebida - o que só aconteceria quase meio século depois, em 2005.
Paul morreu de câncer em 1959. Ele e Erna não tiveram filhos. Segundo Hubertine, o contrato assinado pelo tio-avô nos anos 1930 que lhe dava direito de explorar a marca no Brasil também previa que ele a devolvesse à família caso não deixasse herdeiros.
Secretamente, contudo, ele passou a companhia para o nome de sua esposa, que continuou produzindo e vendendo a Underberg "tropicalizada" nas décadas seguintes.
Foram 50 anos de disputa até que, aos 90 anos, a viúva concordou que os Underberg assumissem o negócio.
A versão brasileira foi rebatizada de Brasilberg e a original voltou a ser importada da Alemanha. Em expansão internacional, a Brasilberg hoje é vendida no Paraguai, Uruguai, no México e na Europa e vai ganhar uma nova fábrica no Rio de Janeiro, na cidade de Miguel Pereira, prevista para 2018.
A receita da Underberg é mantida em segredo há 170 anos. Além da família, muito religiosa, a fórmula da bebida sempre foi confiada a pelo menos um padre católico. Não há registro escrito.
"Até pouco tempo eram dois padres na Alemanha, mas nós passamos para um terceiro, mais jovem, porque um deles já está velhinho", diz Underberg-Ruder, que se tornou "Geheimnisträger", algo como "guardiã do segredo", quando se preparava para assumir a empresa, no começo dos anos 2000. No total, seis pessoas dominam o método de produção, chamado de "semper idem". Paul trouxe para o Brasil a tradição, que se mantém até hoje. Aqui, a receita da Brasilberg é guardada por um monge beneditino. Isso é tudo o que Underberg-Ruder fala sobre o assunto. O resto é segredo.
(Fonte: BBC Brasil-msn - 05.09.2017)
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